Contos

A ÁRVORE DA PAIXÃO







A estrada Edson Passos sinuava-se entre os morros do Maciço da Tijuca. Os matizes multicoloridos do sol de encontro com a exuberante faixa verde da Mata Atlântica aliado aos contornos pitorescos do relevo único e ao vento cálido deslocado pelo movimento do carro, davam a Cléo e Juve, uma agradável sensação de bem estar e prazer.

Os cabelos soltos de Cléo - na direção - exalavam um aroma de patcholy (marca registrada de Cléo) inebriante, despertando lembranças dos incontáveis encontros que tiveram em diversos locais do Rio de Janeiro: no Arpoador, no Recreio, na Reserva, na Prainha, nos quiosques isolados da Barra da Tijuca, no Jardim Botânico, na subida da Grajaú-Jacarepaguá e no Leblon. - recordou-se da música da Adriana Calcanhoto “... e o inverno no Leblon é quase glacial...” - fora num daqueles momentos em que tiveram um atrito mais sério.

Estacionaram no Parque Nacional da Tijuca. Era o lugar predileto de Cléo. “Só trago pessoas muito especiais aqui”, dissera ela na primeira vez que vieram. ”È onde venho repor minhas energias, onde busco sintonia e paz com o universo, cercada de verde, ar puro.É ótimo pra meditar”.Passaram a frequentar uma vez por semana àquele receptáculo de energia purificadora. Certa feita, numa tarde de sábado, plantaram duas mudas de árvores, bem juntinhas, bem próximas. “Crescerão e terminarão seus dias juntinhos. Seus troncos, galhos e folhas se entrelaçarão abraçados, feitos um para o outro, assim como o nosso amor”, declarou ela.

Os dias se sucederam. As semanas também. Depois vieram os meses e os infindáveis e memoráveis anos. Cleonice e Juvenal viveram tórridas paixões - que se transformaram em amor - e grandes aventuras: escalaram o Pão-de-Açúcar - onde retiraram alguns detritos deixados por pessoas menos comprometidas com o meio-ambiente, de suas escarpas -, o Pico do Itatiaia, as Serras de Petrópolis, Teresópolis e de Nova Friburgo. Na Pedra do Imperador fizeram piqueniques. Na Vista Chinesa, namoravam vendo o pôr-do-sol e as noites de luar. Amavam-se tresloucadamente no banco traseiro do carro de Cléo - com receio iminente de a polícia chegar - na beira-mar do Recreio. Um dia subiam pela Hadock Lobo, pegaram a Conde de Bonfim e foram em direção à Usina, para em seguida irem ao seu santuário privado.
No caminho, uma bala perdida (na verdade encontrada), veio se alojar em Cléo. O carro desgovernou e a batida fora certeira. Por um átimo, as mãos outrora entrelaçadas próximas ao câmbio de marchas, foram se soltando nodosamente, como se uma tênue linha fosse se desfazendo. Ela abria a boca vagarosamente para emitir um grito que nunca veio, retido por uma queda abissal, em um mar revolto e raivoso, que sufocava qualquer vestígio de som, senão o dele. Mergulhou em suas águas frias e inóspitas. Projetava-se em câmera lenta para o lado de uma escuridão sem fim. Juve tentava em vão segurar os frágeis dedos que se separavam da amada, no justo momento em que um clarão o assaltou e o puxou de volta para a vida.

Os anos foram se amontoando. Juve permanecia solitário. A saudade não esmaecia. Penosos e árduos anos depois é que Juve sentiu uma necessidade de voltar ao parque. O ar estava úmido e gélido naquela floresta. Em minutos, estava aos pés das árvores que haviam plantado. Admirado, viu que ambas estavam enormes e entrelaçadas, enroscadas numa dança infinita; se encorpando, se entregando numa simbiose perfeita. Os galhos formavam uma única árvore. Corações laceravam os duros troncos com nomes vincados se esvaindo com a intempérie e com o tempo. Tirou as alianças do bolso, osculou-as e as inseriu numa frincha entre os troncos com algumas lágrimas nos olhos.

Saindo do parque, estacou, com o coração parecendo romper o peito. Um enfarte a caminho?

Não. Um casal passara por ele com um diálogo estarrecedor e ao mesmo tempo divino.

__ Vamos até a árvore do amor? - disse o rapaz.

__ Árvore do amor?

__ Sim. A árvore dupla. Ela é a árvore dos apaixonados.

Juve voltou-se e tentou ouvir um pouco mais. O rapaz prosseguia.

__ Dizem que em dia de lua cheia, as árvores se apertam, se estreitam cada vez mais, como se quisessem beijar. Ficam namorando. - finalizou rindo.

__ Ah! Isso é história! - rebateu ela. __ Mas uma história belíssima. - atalhou__ E tem mais! - continuou. __ Uma delas sempre fica molhada, como se estivesse chorando, nas noites sem luar.



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“E eu, quando vi, caí a seus pés como morto;

E ele pôs sobre mim a sua destra, dizendo-me:

Não temas; eu sou o primeiro e o último;

E o que vivo e fui morto, mas eis

Que aqui estou vivo para todo o sempre; amém.

E tenho as chaves da morte e do inferno.”

 

(Apocalipse 1:17-18)

 

“Nada temas das coisas

que hás de padecer.

Eis que o diabo lançará

Alguns de vós na prisão?,

Para que sejais tentados;

E tereis uma tribulação de dez dias;

Sê fiel até à morte, e dar-lhe-ei a coroa da vida”.

 

(Apocalipse 2:10)

 

“E o quinto anjo tocou a sua trombeta, e vi uma estrela que do céu caiu na terra; e foi-lhe dada a chave do poço do abismo”.

 

(Apocalipse 9:1)

SOLSTÍCIO(1)

 

Dia 21 de junho: Solstício de inverno no Hemisfério Sul.

 

A estrada estava deserta e fria. Os últimos raios de sol tinham se esvaído e a noite engolia vorazmente o dia. Um carro cruzava velozmente a pista por entre as colinas arredondadas e verdes. Dentro do veículo, um Mondeo modelo 97 de cor cinza-escuro, a penumbra mal distinguia seus ocupantes. Sérgio Aguiar dirigia. No carona, Nicolas Pontes. A última cidade ficara a mais de 200 quilômetros, a próxima, distante mais de 100 quilômetros. As pequenas vilas tornavam-se cada vez mais raras. A hora avançava e o caminho, parecia não ter fim. Dava a impressão de que estavam no mesmo lugar.

Foi Nicolas quem interrompeu o silêncio:

– Parece que estamos andando em círculos. A paisagem quase não muda. Será que nos perdemos Sérgio?

O motorista, sem desviar os olhos do asfalto rebateu:

– Claro que não! Está tão cansado quanto eu e se engana com a monotonia da geografia do local. Relaxe! Vamos descansar na próxima vila ou em algum hotel de beira de estrada.

Só que Sérgio ignorava que não havia mais hotéis. Nem vilas. Foi quando tudo começou.

Uma forte e densa neblina baixou quase do nada cobrindo rapidamente a estrada e o carro. Instintivamente Sérgio freiou. O carro rodopiou, os pneus cantaram alto na noite adormecida. Nicolas sentiu o coração romper o peito enquanto Sérgio manobrava em desespero a fim de controlar o veículo. Passados alguns segundos, que pareciam uma eternidade, o carro estacou. Assim como veio, a neblina se dissipara. E o que restou foi um longo e tenebroso silêncio: no carro e na pista. Sérgio suava aos bicos! Nicolas abria lentamente os olhos e se descobria:

Vivo! Foi ele que falou primeiro:

– Minha Nossa Senhora! O que foi isso? De onde surgiu essa névoa? Foi um milagre não termos nos esborrachado naquele precipício.

Sérgio como que paralisado, após alguns instantes balbuciou:

– Não entendo. O tempo estava ótimo. Sem qualquer ameaça de chuva ou indício de neblina na pista. Nenhuma placa pela qual passamos indicava presença de neblina ou qualquer outro fenômeno natural. Foi muito estranho. Apareceu como por encanto. Como se fosse uma mágica!

Nicolas percebeu a poucos metros uma velha placa que indicava a localidade em que se encontravam. Dizia: “Bem-vindos à Argúria”. Uma quase apagada seta orientava a direção. Era uma descida suave a margem da rodovia, quase imperceptível. Como o cansaço e a tensão era tamanha, resolveram para lá se dirigir a fim de encontrar um lugar para passar a noite.

– Que nome estranho para uma cidade brasileira – dissera Sérgio. Procure no mapa onde diabos fica essa tal de Argúria, Nicolas. Parece nome épico ou de contos do tipo Conan, o Bárbaro do Swuzazeneger – brincou ele.

Nicolas vasculhou, com o dedo, o mapa, à procura de tal cidade, lugarejo ou o que quer que seja. Nada. Nem sinal da dita cuja. Simplesmente não constava no mapa rodoviário.

– Sinto, meu camarada, mas a cidade não existe. Pelo menos não neste mapa. Deve ser tão pequena, menor até que uma vila, para não ter seu cadastro.

Ao chegarem ao primeiro, e único, hotel a desolação era total. Cada um sentiu terrível frio percorrer suas espinhas. Era uma sensação de como tudo tivesse sido tragado, evaporado: animais, pessoas, aves, insetos ... sons e ... vida ... o que tinha de vida no lugar parecia ter se extinguido. Tudo era silêncio. Tudo ... tão ... tumular!

– Que diabos – exclamou Sérgio. Não há viva alma nessa espelunca. Vamos entrar e acordar o recepcionista ou alguma outra alma.

Tocaram a campainha enredada em fios de teia de aranha. O som ecoou triste, funesto. Um silêncio pronunciado. Em seguida um cheiro acre varreu o recinto vazio. Uma brisa, fugidia, trouxe um odor de podre, velho, asqueroso, tétrico. Alguma coisa surgia detrás da pesada porta que dava para o balcão. Os dois amigos suavam flocos de neve entre as roupas. A coisa estacara próxima à porta. Uma leve respiração se ouvia do outro lado. Algo pesado e denso fremia as laterais da porta.

Nicolas e Sérgio se olharam e começaram a se retirar passo-a-passo fixando a porta e... CRASH! A pesagem rompia-se de uma vez revelando um ser anguloso, pestilento, nojento que projetava seus olhos sem vida para o par de amigos.

Restos do que devia ser uma forma humana se arrastava com garras em vez de dedos. Exalava um pestial odor que sufocava o ambiente e que paralisava o ar reinante. Sons guturais saíam do que se imaginava ser uma boca. De um só golpe partira também o balcão à frente e precipitava em direção daqueles humanos vivos ali presentes.

Sérgio e Nicolas despencaram em louca escapada pela porta como só o instinto de sobrevivência pode fazer. Atropelaram móveis e outros objetos no caminho. Correram como nunca. Lá fora a noite estava mais densa e horripilante. Um frio trazido pela mesma neblina da estrada envolvia o lugarejo. Mais que depressa entraram no carro e deram partida. Todavia, não, não conseguiram dar partida. Não conseguiram!

Algo debaixo do carro impedia a saída. O motor roncava. O acelerador estava no fundo. O cheiro de combustível inundava o ar em volta. Outrossim, um cheiro de carne queimada subia até às narinas dos companheiros. Ao perceberem a chegada de outros seres que cercavam o automóvel, deduziram: havia um deles sendo queimado embaixo dos escapamentos e triturado, porque ouvia-se estalidos de ossos.

– Nicolas! Feche os vidros, rápido! Pegue o revólver que se encontra no porta-luvas! Depressa!

– Meu Deus do Céu! O que é isso Sérgio? Isto é... é...

– Um pesadelo. Concluiu Sérgio.

Os vidros traseiros estilhaçaram. Um deles penetrou o interior do carro e envolvia o pescoço de Nicolas com as garras em frangalhos. Sérgio, num átmo pegou a tranca do volante e desferiu tremendo golpe na cabeça do ser. Um líquido escuro jorrou pelo teto e aquilo se desvencilhou de Nicolas. Sérgio deu a ré e conseguiu ludibriar os monstros. Em seguida engatou a primeira marcha e virou o volante para a esquerda do grupo. Os pneus soaram alto na noite a dentro.

A neblina a tudo cobria e ... TUMM! Acabaram batendo em algo rígido, pétreo! Um grande muro. Um muro vindo do nada a barrar o caminho. Os segundos voaram e o som de pés (ou patas?) se arrastando no chão chegaram à alma dos infelizes que desmaiaram da batida. Lentamente Nicolas despertou e notou que ainda se encontravam nesse terrível pesadelo.

– Sérgio... Sérgio... Acorde. Os malditos... filhos da puta... estão chegando. Pelo amor de Deus, Sérgio, acorde. Vamos.

A neblina aos poucos dissipara-se. Ao fundo, surgia o que se imaginava ser o muro. E era. O de um cemitério! O cemitério do lugarejo. Um imenso portão se projetava. Por entre as frestas do mesmo, mais seres avançavam. Uns abriam suas próprias tumbas. Mausoléus inteiros despejavam asquerosos e cambaleantes corpos putrefatos. Do chão, a terra escura era revolvida e rasgada. Outros corpos espraiavam infectos. Grunhidos e urros varriam a solitária noite espectral. Freneticamente seguiam em direção ao automóvel com corpos quentes e frescos a atraí-los.

– Sérgio... rápido... acelera e tira a gente daqui.

– Estou tentando Nicolas... está emperrado... Não anda.

– Cara... senão sairmos agora vamos ser massacrados por eles – atalhou Nicolas.

Por fim, Sérgio deu-lhe a arma e emendou:

– Arrebente os mais próximos para abrirmos caminho, Nicolas.

Com as mãos trêmulas, apontou o revólver para o mais perto e apertou o gatilho. O som do disparo saiu alto e estrondou no peito do primeiro. Ossos e restos de carne podre espirraram para o ar. No entanto o ser fitava-os e prosseguia tropegamente. Mais disparos se fizeram ouvir e pedaços de carne e ossos voavam. O carro novamente era ameaçado a ficar cercado pelos estranhos seres. Entrementes, Sérgio conseguiu dar a partida. Agora, com fúria e determinação saiu derrubando os zumbis ao redor. Barulhos de corpos se partindo invadiram o automóvel, enquanto a capota se enchia de líquidos vermelhos e verdes, do qual se supunha, ser o sangue dos seres.

O carro ganhava velocidade louca pela estrada que alternava a areia, terra, fragmentos de asfalto e pedra. Hora aqui e ali surgiam novas criaturas que vagarosamente presenciavam a aparição do veículo. Um e outro se punha na rota de colisão do automóvel e imediatamente, era arremessado a metros de distância. A lataria cada vez mais ficava danificada, mas o instinto de sobrevivência e de espanto dos ocupantes, não prestava atenção ao fato.

Passados alguns minutos, perceberam que estavam andando em círculos e o muro do cemitério já se avistava novamente. E as criaturas, sabedoras do retorno, aguardavam-los, ávidos a saboreá-los.

Sérgio pisou fundo no freio. Olhou para Nicolas. Olharam para os lados e para trás. Mais seres apareciam. O cemitério todo emergia. Do nada, e de tudo. Uma horda de cadáveres ambulantes, agora mais velozes, espraiavam-se dos muros do campo outrora santo. O círculo se fechava. A morte, por ironia, chegava!

Sem ter mais para onde fugir, encurralados, sem munição, já à beira da histeria, tentavam articular algum pensamento racional para o que estava ocorrendo. Não conseguiram. O torpor dos amigos contrastava com a frieza dos olhos ou buracos, dos zumbis. De repente um dos flancos do círculo se abriu. Era como um sinal. Um indicativo que eles quisessem que por ali se infiltrassem. Estavam todos imóveis. Sem sons, sem gestos de ataque ou de ofensiva. Um silêncio ensurdecedor varreu o ambiente. Sem mais, seguiram céleres por esta passagem.

No trajeto, que ficava à direita da entrada do cemitério, a alguns metros a frente, depararam com vários carros jogados a esmo e irregularmente na rua. Muitos com as portas escancaradas, quebradas, sem vidros. Estofados rasgados, dilacerados. Volantes retorcidos. Pneus estourados. Latarias amassadas. Restos de trapos humanos espalhados no chão e no interior dos automóveis. Nódoas de sangue besuntavam os assentos, os painéis e em diversos pontos dos veículos. O que chamou a atenção, em especial dos nossos amigos foram as procedências das placas. Havia desde estados próximos, de onde supostamente estavam, até de longínquas paragens: Bahia, Alagoas, Sergipe, Maranhão, Amazonas, Mato Grosso, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, etc.

As marcas secas de sangue ficavam cada vez mais constantes e maiores, à medida que avançavam por entre este “cemitério de carros”, o qual se encontravam. Isto sugeriu que estavam na área de sacrifício, pois não tinham visto nenhum carro no local desde que haviam chegado. Seria uma espécie de altar da imolação para os motoristas desavisados ou que foram trazidos para Argúria pelo mesmo processo que eles: pela neblina. Em face dessas imagens, aceleraram o carro. Pelo retrovisor avistaram que o grupo os seguiam. Mais adiante, a rua se encontrava obstruída por carros destruídos. Não havia mais saída visível. Subitamente, dos carros retorcidos emergiram novos seres. Mais monstruosos, mais altos, mais fortes e eretos. No olhar havia uma expressão grave, viva, perscrutante. Aparentavam ser de uma outra categoria de zumbis, talvez mais inteligentes ou os “líderes” do tétrico e dantesco cenário. Sérgio e Nicolas eram os atores principais ou jantar principal. Parecia que seria o último ato da peça.

– Não sabemos o que está acontecendo, nem o porquê! Se é sonho, pesadelo ou se fomos drogados. Só sei que os habitantes dessa cidade queriam nos ver ou dar “boas-vindas”, e não estão, agora, satisfeitos por estarmos de saída assim tão rapidamente. Disse Sérgio.

– Só sei de uma coisa meu “chapa”. Ou acordaremos ou morreremos, atalhou.

Nicolas respirava profundamente e só então se deram conta que tudo tinha parado: os zumbis estacaram abruptamente. Os olhares estavam estáticos. No meio da turba, um ser, que parecia o líder máximo, adiantou-se e levantou a pútrida mão em sinal de comando. Ao chegar bem perto do carro, contorceu-se e meteu as mãos por entre o peito, como se sentisse forte dor. Em seguida, foi retirando algo de dentro do corpo. Algo alongado, uma lâmina afiada que reluziu pela escuridão. Ergueu o que seria um similar de uma longa adaga, com o punho cravejado de esmeraldas e com um grande olho central de rubi. Dele emanava faíscas rubras, e o seu séquito, em sinal de adoração, urrava como se fosse um símbolo sagrado para aqueles malditos. Era a marca do líder. Do seu Deus! Cabia a ele o início do festim diabólico.

Nicolas saiu desse transe e percorreu o fundo do porta-luvas mecanicamente à procura de mais munições. Não encontrou. No entanto, vislumbrou no suporte para copos da porta lateral, algo reluzente. Sim! Uma caixa de balas! Perdida ou esquecida, ou mesmo providenciada por algum anjo que a fez materializar-se bem ali. A hora era essa. Carregou a arma enquanto a criatura desembainhava a adaga e num lapso, disparou o revólver. A bala atingiu certeiramente a cabeça do líder. Abriu a porta, saltou do carro e começou a descarregar o tambor. O monstro cambaleou para trás, aturdido com essa reação dos vivos. Os projéteis cessaram. A turba estava calada. O líder, caído.

Lentamente Nicolas iniciou o retorno para o carro pé-ante-pé, com a arma em punho ainda fumegante. O líder se moveu no solo. Sustinha na mão o que outrora fora a sua gloriosa lâmina: fragmentos. A lâmina espatifou-se com os petardos de Nicolas.

Surpreendemente, os outros seres se voltaram para onde se encontrava o líder. Um deles, imenso tal como o líder, se achegou e cravou o olhar na adaga despedaçada e no seu chefe, que agonizava. Após breves momentos, como que se aproveitando de prazer em ver um grande rival abatido, penetrou sua mão no lado esquerdo do peito do líder que estremeceu. Imediatamente puxou um naco de tecidos, carnes, ossos. Lambeu e sugou o sangue que jorrava das perfurações. Levantou-se e olhou para os humanos. Enquanto isso, a horda se apossou dos demais despojos do líder, comendo, rasgando, triturando, cortando e sugando os seus fluídos vitais à continuação da espécie. Saciados com a fonte de poder, partiam para cima de Sérgio e Nicolas. O novo líder como que empossado por poderes sobrenaturais a mais, urrou em sinal de advertência aos seus asseclas. Os bestiais seres, ainda sedentos, pararam e deram meia volta. Aos poucos, como que hipnotizados pelo olhar do novo líder, retornaram às suas covas e tumbas.

O novo líder se aproximou dos viajantes e ergueu o braço em direção ao oeste. Subitamente, uma neblina surgiu onde antes havia uma pilha de carros velhos. Através dela, descortinava uma sinuosa estrada. Era um aclive e no topo dela divisaram a placa de entrada para Argúria e a estrada asfaltada. A mesma que, horas ou minutos, atrás se encontravam por sob suas rodas.

O que importava era que o chefe lhes mostrava a gratidão deles terem eliminado o rival e proporcionado a oportunidade de reinar sobre Argúria e todos os seus morto-vivos.

Sem mais pestanejar, ligaram o carro e dispararam através da neblina.

– Seja o que for que tenha acontecido, passou. Estamos vivos e inteiros. Inteiros e vivos! Exclamou Sérgio.

– É inacreditável Sérgio! Ninguém vai acreditar em nossa história quando contarmos.

– E quem disse que vamos contar?

– Não? Por que não? – Inquiriu Nicolas.

– Não adiantaria nada. – Afirmou Sérgio. Deixemos que os mortos descansem em paz, e enterrem os seus próprios mortos. Aprendemos que a vida vale muito mais do que o ser humano pode imaginar com essa experiência, de hoje, vivida por nós dois. Ela vale muito mais que cada morte que aconteça. E ela, a vida, nos mantém a esperança de ter uma boa ou má morte.

Sem compreender bem a filosofia do amigo e imaginando que ele tenha sofrido muito mais o impacto dessa aventura, desviou o olhar do amigo e observou que o dia ia amanhecendo. No mostrador do carro, indicava 22 de junho e cinco e trinta da manhã. O sol raiava no horizonte por detrás da colina. As mesmas, verdes, arredondadas e monótonas. Terminava mais um solstício no hemisfério sul. Tudo estava calmo agora. Foi quando ouviram, uma longa derrapagem, sons de pneus sendo freiados. Depois, silêncio. Olharam pelo retrovisor e avistaram bem atrás os últimos vestígios de uma tênue neblina.

 

 

(1) No dia 21 de junho ocorre o solstício de inverno no hemisfério sul, que é o ponto máximo do inverno nessa região. É nesse dia que essa metade do planeta recebe menos luz e calor do sol, apresentando a noite mais longa e o dia mais curto do ano.