Romances

“O PERSEGUIDOR”









Por



ANDERSON DO COUTO CANDIDO











CAPÍTULO UM















O Boeing 747 da Argélia Air Lines deixou as imensas e turbulentas nimbos cúmulos do Atlântico e adentrou no noroeste do continente africano - a bela e sofrida África. À frente, a cordilheira uniforme dos Montes Atlas - ligando Marrocos e Argélia - intransponível, amarelada no sopé e branca de neve no cume. Entretanto, do alto parecia mais um montículo de areia em brincadeiras de beira de praia, que as crianças fazem.



O sol despejava seus dardejantes e ofuscantes raios solares nas escotilhas e por sobre a fuselagem branca do avião. À esquerda, o enigmático e sensacional Mediterrâneo, com suas águas azul-turmalina, alternando a salinidade de acordo com a profundeza. Avistava-se com maior acuidade, as Colunas de Hércules, no Estreito de Gibraltar.



Um a um, minúsculos pontos urbanos foram ficando para trás, na poeira inexorável do tempo e nas possantes turbinas do jato: Tanger, Tetouan, Oued Laou, Chaquen, Ketama, Al Hoceima, Midar, Nador, Melina, Berkane, Saidia, Oujda. À medida que o serviço de bordo anunciava que haviam penetrado o norte marroquino e diziam as cidades do itinerário que serpenteava às margens do Saara, Ítalo Berti, repassava, tal como flashback, o roteiro tão bem decorado, tão vivido, tantas vezes ensaiado e estudado nos mínimos detalhes daquelas cidades: seu deserto, sua gente, sua cultura tão distinta e intrigante.



Lembrou-se de Tetouan. Fora fundada no ano de 1307 pelo sultão Merinide Abu Thabit. Mais tarde, foi assolada pelo cólera.Em 1399 Henrique III a destruiu inteiramente e no século XVI com a reconquista espanhola pelos reis católicos, expulsa para o Marrocos os muçulmanos e judeus, os quais contribuíram para a restauração da cidade.O sultão Mulay Ismael no século XVII inicia a expansão da cidade.O desenvolvimento de Tetouan ocorrera junto com a cultura andaluza.As mesquitas, os bazares multicoloridos, os cafés e praças banhadas a cal, com grossas pedras nas ruas, casas com janelas em arcos e paredes amareladas pelo tempo e fustigadas pelo vento eterno do deserto.Os seus labirintos intermináveis, semelhando-se com as ruelas das favelas de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, as malocas de Porto Alegre e aos mocambos de Recife; porém, não com o estado de miserabilidade, violência e de caos urbano como destas últimas.



Em Ketama, viveu um tórrido caso de amor com uma espanhola. ”Rosário? Senhora de Rosário, seria o nome dela?” Não se lembrava bem do nome. “Acho que era”.



Conseguira uma cabana no alto das cordilheiras que cercam a cidade. Uma delas conduz até Fez, mais ao sul. De lá, avista-se o ponto culminante, o Monte Tidighin, com seus 2.448 metros.Vales profundos e esplêndidos bosques de cedro, encetavam essa agradável região .Tanto no inverno como no verão a cidade oferecia várias atividades recreativas: hotéis, piscinas de vários tamanhos e formatos; campos de mini-golfe, chalés com ladeiras e excursões até outras montanhas, através de bosques de cedros - alguns com até mais de 30 metros.As visitas às vilas artesanais também são uma atração peculiar da história marroquina.



Lembrara da cabana com um sorriso sensual nos lábios. Havia uma clarabóia em forma de um exaustor, a parede fora feita de tijolinhos vermelhos com tinta preta entre eles. O teto rodeado de madeira de cedro claro.Nas demais paredes, janelotas cobertas de fora-a-fora por cortinas brancas com listras horizontais verdes.Lembrava e muito, a decoração das cantinas e tratorias italianas, tais como as do bairro do Bexiga,em São Paulo,onde estivera algumas vezes , e bem como as da própria Itália, principalmente as de Nápoles.







De Rosário era fogosa e se amaram loucamente na cabana, fazendo-a estremecer em certos momentos. Tudo cheirava a sexo naqueles dias em que ficaram a sós, abandonados pelo tempo e pela civilização, entregues a jogos que faria “Nove Semanas e meio de Amor “parecer filme de matinê. Banhos de vinhos da Real Companhia Velha - vinho do Porto -, passando pelo chileno Concha y Toro, ao suave vinho branco Albatroz - trazido por ele do Sul do Brasil .Comiam e se devoravam em banquetes de frios variados e doce finos e caros de diversas procedências.



Lambiam-se e se degustavam ao longo do dia e da noite. Conversavam pela madrugada, dormiam e se enroscavam num festim Dionisíaco.



Diziam e se calavam. Gritavam e galopavam ardentemente no limiar de suas forças. Tal como começou, tudo acabou. “Melhor assim”.



Em Al Hoceima, por mais que a região evocasse por um romance, absteve-se de qualquer relacionamento. A “missão” iniciava uma fase que requeria muita cautela. Também era rodeada de montanhas, mas com uma saída deslumbrante para o mar. Uma baía em meio círculo abrigava praias e promontórios, bem como ilhas sem iguais. Uma dessas, em particular, chama atenção dos turistas por que nela se encontra um castelo imponente, uma verdadeira fortaleza construída pelos espanhóis. As ilhas e a cidade têm sido disputadas desde o século XVIII, pelos franceses, com o desejo de Colbert, pelos ingleses e pelos espanhóis, que queriam estabelecer nesta posição, um interessante ponto estratégico e comercial.



Atualmente Al Hoceima é visitada para fins pacíficos e oferece um porto de pesca ativo e uma estação balneária badalada. Hotéis, clubes e bangalôs permitem aos turistas uma permanência confortável, na qual as alegrias do mar acompanham uma vida muito animada para os veranistas. “Eu que o diga”. Para cada prato típico, há uma festa. Especialmente a da pesca do mero, que abunda nesta região.Fechando os olhos, Ítalo lembrou dos penhascos esbranquiçados e vermelhos, que abruptamente despencavam no verde mar cristalino.Via as duplas que navegavam em “pedalinhos” - como os da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro.Muitos espanhóis, franceses e italianos faziam o grosso dos turistas.Aspirava o ar úmido das bordas desses penhascos quando ali mergulhava.Os meros que pescava, uns com quase 80 centímetros e pesando de 8 a 10 quilos, serviam uma bela refeição.No final da tarde costumava ver o pôr do sol , dos mesmos penhascos e observava os pequeninos seres humanos que saltitavam à beira do mar, tão despreocupados, descontraídos, sem saber da nuvem escura e ameaçadora que pairava por sobre suas cabeças.



Havia as cidades de Nador e Saidia, próximas à linha costeira, a leste de Al Hoceima. Nador ficava em uma laguna, a de Khubuareg. Propícia à pesca e a esportes náuticos, o que lhe valeu um belo e espetacular tombo de esqui-aquático, ficara uma semana com dores lombares desagradáveis.As construções ali abundavam e proliferavam dia e noite.Brotavam em um piscar de olhos.Havia o badalado e inabalável Bulevar Mohamed V, bordejado de cafés onde desfilavam a alegre e colorida população dessa pitoresca cidade.



Uma rápida excursão conduzia os turistas a uma magnífica Kasbah, construída no final do século XVII por Mulay Ismael. A viagem até o Marrocos Oriental nos conduz, pela orla marítima, até a região de Saidia, com sua praia de areia fina a qual se estende por dezenas de quilômetros e sua exuberante baía, adequada à recreação. Possui uma fortaleza fundada pelo grande sultão Mulay Ismael na segunda metade do final do século XIX. No campo, grande riqueza de frutas e hortaliças destacando o fabrico do vinho Moscatel, o qual tomou um porre e tanto na taverna de El Gynal. Guias com camelos preparam excursões por entre os desfiladeiros e montanhas. Pagara uma fortuna por um aluguel de camelo, sem guia.Cinquenta?Sessenta?Setenta?Ou fora cem dólares?Não se lembrava ao certo.



Uxda. A capital do Marrocos Oriental. Diversas dinastias disputaram essa glebas por sua posição estratégica, entre o Marrocos e a Argélia: Zenetes, Almoravides, Almohades, Merinides, Saadienses, turcos de Argel, etc.Durante dez séculos de história, as muralhas da cidade foram construídas e destruídas a tal ponto que só sobrou uma porta conhecida com o nome de Abdelwahed, bem conservada, apesar das intempéries do tempo.







Asilah. ”Ah! Asilah!” Onde tudo começou, pensou.”À quanto tempo?” - ficou perdido no caminho.Um paraíso na ponta do norte da África.Praias belíssimas, temperatura da água na faixa dos vinte graus.Asilah teve um passado agitado.Cartagineses -talvez até Aníbal ali estivera transportando seu exército junto com seus setenta e cinco elefantes, para atacar Roma de surpresa atravessando toda a Europa, inclusive escalando os Alpes - normandos , portugueses e espanhóis a cobiçaram.Foi durante décadas, governada pelo ex-bandoleiro temível Don Raisuli, que negociava com Almanes e espanhóis, o trono de Marrocos.



Atualmente, as casas brancas com telhados cor de ferro, vivem na tranquilidade e serenidade. A cidade antiga se esconde no interior das muralhas as quais abrigam o orgulhoso palácio Raisuli. Algumas cachoeiras pequenas descem e desembocam sobre a praia, cheia de enormes ondas negras.Algumas vezes,Ítalo as desceu em trabalho.Margeou todo o litoral à nado, até chegar à restinga Smir, passando dois dias e duas noites, aguardando ordens.Lá foi um ótimo esconderijo.Sorriu.Se divertiu também.Oh! Sim!



A reputação do local era internacional, no meio veranista. Era a mais moderna estação balneária. Oferecia um grande número de hotéis, bangalôs, night clubs, além de uma estrutura turística importante, concebida de tal forma a fim de integrar-se com facilidade ao estilo mediterrâneo. A praia era imensa, com água transparente de diversos matizes. Podia-se sentir as vagas estourando o fundo marinho, lodoso mas suave; a leve gelidez da água, refrescando a cada parte do corpo que submergia.



Seguindo a direção leste, chegava-se à Cabo Negro, conhecido por suas praias desertas e encantadoras.



Numa delas, fez amor com uma fogosa napolitana, viúva e endinheirada. Foi até estranho, andava com um barco a velas de rodas na praia e se deparou com a viúva a espreitá-lo, sentada na areia com os pés na água.



O olhar foi tão penetrante, perscrutador e lascivo que não se deu conta de como já se encontravam, falavam e em instantes se enroscavam e beijavam-se ardentemente.



Esta estação compreendia ligeiras embarcações, hotéis e um teatro ao ar livre. O povoado fora construído em muitos níveis e com muitas sombras. O espetáculo do pôr-do-sol era grandioso, indescritível.Muitos acreditavam que é possível ver Hércules no Estreito de Gibraltar, separando a Europa da África.



Em Mdiq, povoado rival, celebra-se no mês de julho, um festival que a cada ano atrai homens e mulheres do mundo inteiro. Fora lá que tomara um pileque de rum, com batidas nativas, suavizadas por dúzias de cervejas Ismael.



Depois Martil. Martil dos espigões marinhos com mais de quarenta metros, com formato de granito avermelhado. É também outra estação turística. Possui um porto de pesca que se encontra na desembocadura do rio Martil.Ali as ondas quebram suaves, gostosamente.Tem um passado recente.Tem o privilégio de possuir dezenas de quilômetros de praia e muitas, muitas casas de veraneio, aos quais fluem de todos os horizontes, os turistas.Os seus restaurantes servem iguarias locais e de diversas procedências continentais.



Uma vez saboreara uma enorme lagosta salpicada de hortaliças locais, bem como condimentos fortes da casa. Sorvera como acompanhamento, um delicioso martíni e ao mesmo tempo, uma gostosa Budweiser gelada.



Emergindo dos seus pensamentos, pediu à aeromoça uma cerveja. Nisso o avião fez uma volta e imbicou rumo ao aeroporto internacional de Rabat, a capital marroquina.



O ar estava seco e quente, como característico do clima mediterrâneo, ao longo do litoral, quando desembarcou. Por frações de segundos, divisou a pista reverberando ao calor sufocante, a torre de controle branca faiscando ao sol, as vidraças de vidro fumê diante da nave, o céu límpido e o corre-corre normal dos aeroportos pelo pessoal de apoio, seguranças e serviços gerais.







Aos poucos, foram descendo pelas escadas metálicas: os italianos, franceses, ingleses, japoneses, brasileiros, marroquinos e egípcios. Estes últimos iriam aguardar uma conexão para a Cidade do Cairo.



A maioria vinha a turismo e Ítalo Berti ingressou nesse grupo em Paris, para conseguir o vôo. Entretanto, manteve-se distante, isolado, indiferente e frio. Evitou conversas, mesmo com os de sua pátria:os brasileiros.Motivados com a redescoberta de Marrocos pela novela da TV Globo “O Clone”,de Glória Perez, houve uma corrida às “ coisas” árabes e em especial ao Marrocos, em que pese o efeito provocado pelo atentado das Torres Gêmeas em Nova Iorque.



O disfarce era perfeito. Não levantava suspeitas, haja visto que as estações turísticas estavam a pleno a vapor ali e contribuíam de forma significativa, para aumentar as fontes de renda do país. Desde o filme Casablanca, uma chuva de turistas inundou aquelas terras áridas, tentando outrossim, captar a aura, de Humphrey Bogart e de Ingrid Bergman no filme de Michael Curtz.



Da outra vez que tinha vindo, usara documentos falsos da República da Argentina. Fora Mário Arthur Kempes, estudante de turismo em estágio final. Encimava uma cabeleira típica dos jogadores de futebol da Argentina.Portava uma barba negra vasta, estava mais magro, roupas espalhafatosas, inclusive com camisas dos times de futebol do Boca Júnior, Ríver Plate e do Estudiantes.Ah, e é claro, da Seleção Argentina.



Enquanto aguardava a bagagem, ficara sabendo que a próxima conexão para Marrakesh demoraria mais do que previsto. Sendo assim, após pegar a bagagem - que constituía de uma rechonchuda mochila verde e uma maleta - adentrara ao salão vip. Foi ao toalete imaculadamente limpo com cheiro de lavanda impregnada no ar.O piso continha desenhos de motivos medievais, de cor avermelhada e os azulejos de flores -de- lis desenhados em bege.Lavou o rosto na torneira de bronze e deixou um bom tempo a água escorrer por entre seus dedos enquanto fitava alguém no espelho de moldura ovalada.Esse alguém era o seu próprio reflexo.Denotava cansaço e um certo ar de largado, desleixado.O cabelo estava em desalinho, em que pese o corte moderno que ostentava. “Fruto de Paris”. Com as próprias mãos endireitou-o. Esboçou um sorriso, no que foi repetido por alguém do espelho.O aspecto já melhorara - pensara.



No salão estavam as pessoas aguardando a conexão para a Cidade do Cairo, que vieram consigo. Havia mais quatro pessoas, que como ele, esperava o vôo para Marrakesh. Foi ao bar e em inglês pediu uma água mineral.Sorveu avidamente o copo.Em seguida deteve -se a olhar as prateleira do bar.Parou quando avistou uma linda garrafa do vinho francês - com o vasilhame ondulado, sinuoso - J.P. Chenet Blanc de Blancs. Pediu a garrafa. Ao deleitar-se com o vinho, virou-se e ficou a contemplar a paisagem escurecida pelo vidro fumê. Sua vista foi alcançando a pista e seus pensamentos foram com ela.



Estava na África. Os pés em solo africano. A África do Norte, também conhecida como a África Branca, marcada pelo predomínio de população de origem basicamente árabe, devido à expansão do Islamismo.Lá pelo século VII, os árabes transpuseram o continente africano, alcançando o extremo norte africano e o sul da Europa, especialmente na Península Ibérica.Abateram seus inimigos e acabaram dominando a região, causando a mistura com os primitivos habitantes e que hoje se estendem por toda a África Branca:Egito,Líbia, Tunísia,Argélia,Marrocos,Mauritânia ,Sudão e o Saara Ocidental.



Olhando mais além, Ítalo podia sentir o Mediterrâneo batendo secularmente nos paredões e espigões da costa. Fechou os olhos e se imaginou lá. O clima mediterrâneo em sua expansão com suas chuvas orográficas, influenciadas pela Cadeia do Atlas, tornando o solo fértil.Estava em plena área do Magreb, que significa “ilha do poente” e que faz parte o Marrocos, a Argélia e a Tunísia.É uma região onde se cultivam oliveiras, videiras, frutas, cereais e hortaliças.O clima mediterrâneo estende-se pela faixa litorânea da Líbia e do Egito onde o quadro natural vai alterando, tornando-se mais árido e com uma vegetação formada por plantas arbustivas e espinhosas, conhecida como garrigue.







Após virar mais um copo, levantou-se e pegou seus apetrechos de mão e de dentro “sacou sua arma”: o inseparável disc-man. Inseriu um cd do Oasis e “Stand by me” soou por entre seus tímpanos. Depois vieram “Fuckin in the bushes”, “Go let it out”, Who Feels Love?”, “Supersonic”,Shakermaker”,”Acquiesce”, “Step out”, “Gas panic”, “Roll with it” e “Wonderwall”Gravara o show do estádio de Wembley, na Inglaterra. Fora indescritível a emoção de milhares de pessoas cantando as músicas do antipático Gallacher e sua trupe.



Durante a viagem veio ouvindo sua coletânea de CDs. Ora eram os Titãs, o Legião Urbana, o Ira!,o Engenheiros do Havaí; ora era o The Cult, o Liking Park,o Oásis,o Pink Floyd, e o seu predileto U2.Ele literalmente voava com o U2.



Já vira o show deles inúmeras vezes: no Brasil, em Massachucets, em Dublin, em Londres e até em Berlin.



A voz possante de Bono inundava os seus pensamentos .”Pride”, “New Year’s Day”,”I Still haven’t found what I’m looking for”, “Where the streets have no name” e a imperdível “With or without you” lhe causavam felicidade e um bem estar sem fim. Ainda mais com as nuvens roçando o dorso do avião ou as asas. Parecia o próprio Deus admirando o seu mundo do alto para sua criação, bestificado de tanta beleza natural e com um orgulho infindável.



O serviço do aeroporto, em francês, anunciava o cancelamento do vôo por motivos técnicos e operacionais. Anunciavam que os passageiros teriam direito à estadia naquele dia até restabelecer a situação.Imediatamente um ritmo alucinado imperou no aeroporto:as lojas foram sendo fechadas,as cabines das empresas apresentavam-se suspensas, um número cada vez maior de policiais, agentes,corpo de bombeiros e até do exército iam e vinham.Os passageiros em trânsito ficavam estupefatos sobre o que realmente estava acontecendo.O bar foi fechado, seguranças encaminhavam os passageiros para os terminais de ônibus e de táxis.



O faro de Ítalo delatava que algo em especial estivera ocorrendo nos dias anteriores e que desembocava ali em Rabat. Imaginava que isto demoraria acontecer, talvez nos próximos meses.Isto poderia mudar seus planos completamente.Tal como veio em sua mente, essa divagação dissipou-se quando o segurança veio em sua direção.Calmamente, pousou o copo na mesa, sobraçou seus pertences e partiu rumo ao agente que lhe indicava o caminho da porta.



Ítalo quis um táxi para se ver livre de outros passageiros. Pegou um surrado Renault com um motorista que lhe dava repulsa só ao vê-lo;trajava barbaramente sujo e imundo;falava tresloucadamente um francês duvidoso e tinha ares de que faria tudo por uma boa gorjeta.Por falar nisso, esquecera de trocar os dólares no aeroporto.Pegaram o caminho que lhes conduziria ao centro da capital.Passaram pela ponte Moulay Hassan atravessando o Oued Bou Regreg e chegando à Boulevar Abi Regreb.Passaram pela Praça Sidi Makaloui e direcionavam para a Tarik al Marsa quando Ítalo interpelou o cicerone Chellah com a sua algazarra e enxurrada de informações que ele jogava à esmo, para pegar a Boulevar Hassan II..



__O senhor conhece o caminho? - perguntou Chellah surpreendido pelo conhecimento de Ítalo.



Ítalo disfarçou e se refez da falha cometida.



__Estive uma vez com meus pais a passeio e gostei muito de ter passado por esta avenida.



Chellah olhava do retrovisor e seu ar circunspecto desanuviara.



Ítalo desviou o olhar e passou a admirar a beleza da avenida o que não o desmentia.



Rabat foi erguida à beira do rio Bou Regreg com uma abertura total para o Oceano Atlântico. A história parece fluir desta cidade desde a Antiguidade. Com esta localização estratégica, a cidade se entregou ao comércio que virou tradição e vocação histórica. Principalmente quando serviu de praça comercial para a Fenícia, Cartagena e pelo Império Romano.Os reis da dinastia Alauita foram os que em 1660 integraram Rabat à administração do Reino, concedendo-lhe o título de Cidade Imperial.Hoje Rabat é a capital do Reino do Marrocos e um promissor centro econômico, cultural e universitário do país com mais de 1.400.000 habitantes.







A Boulevar faz limite com uma área da capital conhecida como Medina, famosa por conter diversos mosteiros e sinagogas. É uma área que divide o cemitério muçulmano e o israelita.Passaram bem perto do Mosteiro Moulay Siman.Estivera lá uma vez recebendo novas ordens. Dobraram à esquerda, coma Avenue Mohamed V, passando pelo Triangle de Vue, a prefeitura e o teatro, e finalmente a Chambre des Représentants.Rumando ao sul, deram no Mosteiro Assounna.Viraram a leste e percorreram a Moulay Hassan dando com a Rue AL Jazat.Em seguida chegou à Praça Lincoln, destino final.O Hotel Al Jazat jazia inerte, alto e estreito, a poucos metros da praça.



Durante o caminho urbano, ficou sabendo o porquê da agitação do aeroporto.Nas ruas, pouco movimento, lojas com portas semi-fechadas(lembrando até o Rio de Janeiro nos dias que o poder paralelo do tráfico, impunha o toque de recolher), tropas federais circulando e o trânsito um pouco lento.



Chellah dizia que o país estava atravessando momentos difíceis. Vários atentados passaram a ocorrer em diversas províncias tendo como possíveis autores os seguidores da Frente Polisário (Frente Popular para a Libertação da Saguia El Hamra e Rio de Oro) que lutam pela independência do Saara Ocidental,atual nome do território.



No entanto, Chellah achava estranhos tais procedimentos, pois o grupo antes, nunca havia demonstrado tais atos brutais, os quais já haviam ceifado a vida de dez pessoas só naquele ano.



Ao passarem pela bela Praça Lincoln, com o hotel já à vista, o colóquio de Chellah e Ítalo fora bruscamente interrompido por ruidosa explosão bem no meio da praça. Cacos de pedras, pó e fuligem voaram de encontro ao veículo.Um corpo chocou-se na porta onde estava Ítalo e uma cabeça redonda e vermelha de sangue veio rolando pela capota do motor até espatifar-se no pára-brisa e subir pelo teto, deixando um rastro vermelho de sangue e uma branca, da massa cefálica.Chellah, no instinto, jogou o carro para o meio da pista, numa manobra arriscada, batendo em outros veículos e atropelando um ciclista catapultando-o de encontro à vitrine de uma loja sofisticada, fazendo-a em milhares de pedaços. Outros veículos foram batendo provocando um caos urbano.



Aos trancos e barrancos, Chellah conduziu o veículo até o hotel, parando numa guinada brusca. Enquanto Chellah descia para averiguar os danos, Ítalo pegou sua bagagem e sacou cinco dólares para pagar a corrida, mas ante a verborragia berbere de Chellah, amaldiçoando quem fizera aquilo, pegou mais dez dólares e enfiou na mão do atônito marroquino, que imediatamente parou de rogar suas pragas e sorriu de agradecimento para o gringo. Normalmente, uma corrida do aeroporto até ali custaria em torno de20 dirrãs (dois dólares), para um cidadão comum.Sendo turista eles cobravam de 50 a 60 dirrãs (em torno de cinco a seis dólares). Apressadamente subiu os degraus da escadaria que levava ao hall do hotel, o qual se encontrava em balbúrdia diante do insólito acontecimento.



Lá fora as sirenes das polícias e das ambulâncias tomavam o ar; gritos podiam ainda ser ouvidos, seja pelas vítimas, seja pelos transeuntes que estarrecidos com tamanho horror, davam visão a seus sentimentos. Com muito custo, conseguiu que um atendente lhe confirmasse a reserva em nome da empresa aérea. Pegou as chaves do quarto e partiu célere.No caminho encontrou hóspedes em pânico, falando e gritando em várias línguas:francês, inglês, italiano,espanhol etc. “Mondieu!Ah!O mundo globalizado.”







Um segurança o impediu de acessar o elevador, e por medida de segurança, a gerência do hotel tomara a decisão de retirar todos os hóspedes dos quartos e deixá-los no hall e demais dependências do térreo. Deu meia volta e com o tumulto gerado pegou as escadas de segurança que estavam com alguns hóspedes ainda descendo aos empurrões e em pânico. Subiu até o terceiro andar onde estaria seu quarto, e adentrou pelo corredor atapetado de verde com paredes pastéis.Vasos de plantas ornamentavam a cada quatro quartos.Enfiou a chave de cobre e a porta suavemente se abriu.O quarto era bem decorado, confortável e aconchegante.Mas o tempo não era para banalidades no momento.Foi ao banheiro e começou a trocar-se.Tirou a peruca grisalha, o nariz pontiagudo , a pesada maquiagem das faces:as olheiras, os cremes, o aparelho de surdez, as sobrancelhas (como o nariz) postiças, o enchimento do tórax e da barriga, o pesado casaco azul-claro, a calça de brim branca e os sapatos alemães pretos poeirentos.Colocou tudo na bolsa pequena de mão que trouxera.Da mala retirou uma camisa preta de manga curta,justa no corpo; molhou a vasta cabeleira preta e aplicou um gel.Fez um rabo de cavalo com um elástico escuro; pôs óculos escuros, uma calça preta colada, botas pretas finas.No bolso traseiro, colocou a carteira recheada de dólares.Outros tantos dólares nas botas, nas meias, atrás do grosso cinto, um pouco na mochila, no fundo falso. Virou ao avesso a mochila verde, e ela ficou amarela. O mesmo ocorrera com a maleta, de marrom passou a preta.Toda a transformação não durara dez minutos.



Deixou a porta apenas encostada e com um bilhete escrito num sofrível francês na penteadeira presa com água:



“Não suporto todo este pânico. Esta cidade é maluca e não quero ser o próximo a pirar ou a morrer. Adieu!”.



Assinou com o nome do passaporte atual: Gerard Trossyer. E com um PS.:”Cobrem da companhia!”



Ítalo atravessou a rua, dobrou a esquina e passou rente aos destroços da bomba que explodira. Estavam lá a CNN, a Reuters e outras agências nacionais e internacionais de notícias;as ambulâncias, a polícia e o exército.Curiosos de plantão (mesmo no Marrocos) ficaram barrados pela indefectível faixa amarela e preta.Estendidos aqui e acolá, sacos plásticos pretos sinalizavam as vítimas, ou o que sobrara delas.



Outros tantos davam entrevistas, uns em prantos outros friamente, como se estivessem fazendo uma profunda análise mercadológica ou uma resenha esportiva.



Um perito colocava um braço dentro de um dos sacos.A cena -tantas vezes vista - lembrava-lhe mais um atentado em Israel ou na Palestina.Tanto faz.“Mundo pequeno este, não? Simplesmente, Merveilleux euse. Dobrou à direita e foi driblando transeuntes atônitos.Pela informação que pedira, o Hotel Safir ficava à algumas quadras adiante.Um taxista esbravejava com outro - talvez pela disputa de um cliente, ou quem sabe, por uma fechada de trânsito.Parecia o Brasil.” Mundo pequeno, não?”Subitamente lembrou-se de Chellah, o taxista que o trouxera do aeroporto até o centro da cidade. O marroquino tagarela lhe confidenciara, em poucos minutos, toda a trajetória de sua vida. Havia nascido de uma família pobre, filho de pai morto, quando da ocupação francesa e tendo mais oito irmãos e duas irmãs. Quatro morreram também na guerra, na vã expectativa de vingar o pai e libertar o país, secundariamente. Chellah até queria lutar, mas a guerra findava e a mãe não lhe permitira partir para mais um inglório embate.



Ficou. Estudou no OSUI (Ecole André Malraux) e depois foi para AEFE (Ecole Pierre de Ronsard). Não conseguiu emprego de imediato. Foi trabalhar no setor de fertilizantes,onde o país é grande exportador.Entretanto, o contato com os produtos, foi esmorecendo sua saúde.Juntou suas economias e comprou um táxi em Rabat, ficando assim, próximo de sua família.Casou, teve seis filhos, mora ainda com a mãe e mais duas tias:uma é cega de nascença e a outra aleijada, por ter sido atropelada por uma manada de camelos num festival em Agadir.Somente ele para sustentar a casa, no subúrbio da capital. Tivera piedade do falante Chellah quando, do desvio do carro, devido à bomba, o carro sofrera avarias e batera. A sua irritação com a batida foi maior do que o atentado, deixando-o colérico e fazendo piscar mais do que o normal, suas pálpebras, salientando a da esquerda, a qual apresentava um calázio - um pequeno tumor granulado que faz saliência sob a pele do bordo livre da pálpebra - que Chellah jurava ter sido provocado pela intoxicação de fertilizantes.



O Hotel Safir passara por reformas que o deixaram dinâmico, amplo, moderno e confortável. Seu hall espaçoso e ensolarado combinava harmonicamente com cores suaves de verde em infinitas tonalidades. Próximo às paredes, luzes direcionadas criavam um âmbito agradável em pequenos “nichos” com muitas plantas ao redor e pequenas almofadas para o deleite dos hóspedes em espreguiçar-se ou simplesmente conversar e ler.O balcão de madeira, brilhando ao toque solar, abrigava um casal de recepcionistas simpáticos, que prontamente lhes atendeu e reservou um bom quarto virado ao pôr - do- sol.



Placas calcografadas em bronze, diziam em francês: “BIENVENU, BIENVENUE”, etc. Ao passar pelos corredores, notou belos quadros de Chaibia. Por todos os corredores, inclusive no hall,havia um sistema de som aconchegante com maravilhosas melodias “gnaouisme”, de um gênero musical maravilhoso: a Gnaovas.







Ítalo deixou a bagagem no armário de cedro, chegou até a janela e aspirou o ar fresco que adentrava o quarto. Voltou-se, ligou o rádio e mais música gnaouisme.Ligou o ar refrigerado e a TV.Nenhum noticiário ou algum tipo de plantão nas TVs marroquinas.Pegou revistas no criado-mudo e folheou-as até encontrar a programação das TVs .Dali à uma hora teria um telejornal na rede estatal,onde talvez noticiasse o episódio de hoje.Pegou alguns jornais :o franco-árabe Assabah, o L`Economiste, o Le Gazette Du Maroc, o Sada Taonate, o Temps Du Maroc, o The North Africa Journal e o Bayane Alyoune.Em resumo, notícias normais do mundo, “ah o velho e incrível mundo;mais uma rodada de negociações entre palestinos e judeus, a insaciável beligerância americana contra o Eixo do Mal e mais alguns outros que o impedem de manter a sua supremacia global;conflitos étnicos na África, o crescimento monumental da China em todos os setores econômicos e políticos;atritos entre os membros da União Européia e as instabilidades dos países latinos-americanos.



Ítalo levantou-se e foi até a escrivaninha observar um quadro enigmático de Akkar.



Do lado do quadro havia um vaso com calêndulas que encobria a caliça que escorria do roda-pé;com certeza oriundo das reformas que passara do hotel.Ítalo observava esses detalhes que passavam à vista de qualquer um, menos a dele.Dizia que para encontrar uma perfeição em alguma coisa devia-se primeiro atentar às pequenas manifestações de desordem.Havia um pouco de perfeccionismo no homem Ítalo e uma dose exagerada no profissional Ítalo Berti.



Na parede detrás do cabideiro, em mogno, atado à mesma, tinha um calamo (tubo ou canudo de palha em forma de flauta campestre, também utilizado na antiguidade para escrever). Parecia ter saído de um museu tal a sua perfeição e originalidade.



Foi ao banheiro tomar uma ducha. O piso de mármore branco com entalhes róseos e azuis reluzia à limpeza e com odor de desinfetantes.À direita ficava os lavatórios encimados por um amplo espelho com spots direcionados para o centro das pias.Sabonetes Valan, ensacados, se postavam na saboneteira em forma de uma palmeira juntamente com as toalhas meticulosamente e imaculadamente limpas,jungidas ao meio por fitas de cetim azul.O box ,de vidro fumê, se posicionava em frente aos vasos sanitários de louça branca, aparentando torres em suas caixas de descarga.O conjunto da obra se fazia jucundo,alegre, aliando a modernidade e a tradição.Ítalo sempre achava que para você descobrir como anda o asseio de qualquer restaurante, bar, café ou um botequim , bastava dar uma olhadela nos seus WC ‘s. E o curioso que até poderia se traçar um perfil sócio-econômico e psicológico dos donos dos estabelecimentos observando o piso, o revestimento, o vaso, o interruptor, os fios, as lâmpadas, o papel higiênico (quando tinha) a descarga -tinha horror em dar descarga em caixas que sustinham uma corda de nylon ensebada , débil e vacilante com manchas mais escurecidas na extremidade,de tantos dedos desconhecidos que a manusearam.Puxava a cordinha bem acima dessa desagradável linha infecta.Abria a porta do cubículo,e a mantinha entreaberta com a ponta dos sapatos, até lavar os dedos e as mãos, sem antes ter lavado a própria torneira.



Após lavar-se, folheou o cardápio do quarto. Foi para o setor de bebidas.Vinhos.Sua grande tara.Ou seu grande vício?Passou o dedo indicador cautelosamente, como se fosse decifrando um código ou verificando o seu nome na lista de classificados do vestibular na adolescência:



Marques de Griñon Syrah 1999(Spain) ...........................................US$ 40.



Cortes de Clima Incognito 1999(Portugal).........................................US$ 50.



Crozes-Hermitage “Nobles Rives” 2000(France)...............................US$ 20.



Ciacci Piccolomini D`Aragona Fabius 1999(Italy) ...........................US$ 48.



Kaapzicht Shiraz 2000(South Africa). ...............................................US$ 16.



Santa Emiliana Syrah 2001(Chile)......................................................US$ 7.



Miolo Terranova Syrah 2001(Brazil)..................................................US$ 5.



Finca Flichman Syrah 1999(Argentina)..............................................US$ 11.



Pepper Tree Mulberry Row 2001(Australia).......................................US$ 14.



Wente Vineyards Syrah 2000(USA)....................................................US$ 17.







Ligou para o serviço de quarto e o garçom explicou que o Shiraz ou Syrah, é a melhor uva no mercado no momento e como se fosse um grande enólogo, discorreu pela atração que tem tendo esta uva que na Austrália foi batizada com este nome, mas se encontra em várias partes do mundo, como se pode observar pelo menu.”No Vale do Ródano...- iniciou ele- ...a uva dá origem a dois dos mais famosos tintos da Terra-exagerou ele-...o Hermitage e o Côte-Rotie que são produzidos há séculos em áreas bem reduzidas,bem pequeninas.” Ainda discorreu sobre o avanço australiano, que há 250 anos produz vinhos, e que tem atraído uma fantástica massa ávida para provar e se deliciar com seu Penfolds Grange, o Jim Barry Armagh e o Henschke Hill of Grace que são vendidos estratosfericamente à mais de duzentos dólares.



Então, por fim, com um certo ar blasé, pede ao garçom um sirah de sua preferência.Ele o indica o Hermitage.De roldão, para não fugir à sua nacionalidade escondida, solicita o brasileiro Miolo Terranova Syrah.Para acompanhar pede um queijo cheddar fatiado , salame Milanês e lombo defumado canadense.”Oui, Monsieu!”-ouviu do outro lado da linha.



Sintonizou algumas rádios: a Radio Casablanca, Morocco & Africa Today (que executava músicas do grupo Al-Andalus), a Magreb Agence Presse e por último a Médi 1 Radio Méditerranée Internationale(executando o som funk-rock do grupo que é considerado, ou foi, um dos estandartes da nova música marroquina, o Aflail).Após a execução da música, iniciou um noticiário:



“O prefeito de Rabat, Zafiz Mohamed, pronunciou que o atentado de hoje não pode servir de estopim para eventuais ataques no futuro, na cidade ou em qualquer parte do país. E que os culpados devem pagar caro os danos que causaram.” “... não podemos de ficar de braços cruzados esperando um novo ataque. Temos que combater com o máximo de rigor, todas as possíveis ações terroristas; seja marroquino ou não, devem os responsáveis ser execrados e executados...” Visivelmente emocionado, o prefeito leu o primeiro boletim divulgado pelo exército e a polícia conjuntamente: doze mortos e 46 feridos, sendo seis em estado grave. Aqui falou Raoul Contreyras, voltaremos às onze e trinta ou a qualquer instante...“



Desligou o rádio e fixou o olhar na TV. Passou por diversos canais até chegar à estatal que com uma nênia ao fundo, mostrava cenas do local do atentado. Em primeiro plano o trabalho do repórter.Em segundo a população contida por policiais,corre-corre de paramédicos, ambulâncias, viaturas do exército e soldados às armas.Corta.Volta o âncora tendo como pano de fundo, profissionais da emissora circulando por detrás dos bastidores.O cenário é de um azul puro,límpido.O apresentador tartamudeia as informações, dando ênfase dramática:”...o primeiro-ministro Saba Isal informa que tem fortes convicções de o atentado ter cunho nacional, interno, possivelmente a Frente Polisario, apesar de nenhuma facção ou grupo ter assumido a autoria ainda.”...o governo marroquino estará trabalhando para dar garantias à população que os responsáveis serão encontrados e julgados. “



Ítalo não deu muito crédito ao noticiário, pois o governo não explicou que momentos antes já havia um estado de alerta pela cidade, talvez pelo país. Ele conhecia bem a cidade e seu comportamento.E lhe dizia que algo estava para acontecer e que o exército e demais homens do poder marroquino, estavam de prontidão, como se aguardassem a qualquer momento um desfecho dessa magnitude. Claro que não foi veiculado para a imprensa e muito menos à população. Sabia que após o atentado às Torres Gêmeas nos Estados Unidos, o mundo tomou precauções, quase uma histeria, com todo árabe que surgisse na frente.Os portos, aeroportos, fronteiras(antes abertas)passaram a sofrer uma grande vigilância.E só aumentou com os atentados ao Big Ben de Londres, matando trinta e quatro pessoas e ferindo outras sessenta e cinco;ao atentado na Praça São Marcos, no Vaticano, matando vinte pessoas e ferindo oitenta;e o maior de todos pós-Nova Iorque, quando da derrubada da Torre Eifell na França, causando tamanha comoção mundial, ceifando a vida de mais de quinhentas pessoas e ferindo cerca de seiscentas outras.







Isto foi há dois anos. O grupo de Bin Laden assumiu todos os atentados, principalmente após a invasão americana ao Iraque, depondo e capturando Sadan Russein, que conseguira escapar de Bush, com seu séquito.Precisava saber se nas outras cidades o estado de alerta estaria acionado ou se exclusivamente Rabat era o alvo anunciado previamente.Tinha que contatar Damasco ainda hoje.



A campainha o chamou de suas elucubrações. O garçom adentrou trazendo seu repasto.”Excuse Monsieur.”O aroma estava uma delícia.”Hum,bon bonne!-disse Ítalo.Deu-lhe alguns cents e passou a comer.Antes do garçom ir, perquiriu se o estabelecimento possuía alguma sala de informática para os hóspedes;dissera-lhe que ficava do lado da sala de jogos , próximo do hall. Escolheu um canal de esportes.Passava um VT de Real Madri x Barcelona.







Na sala haviam vários computadores.Metade estava sendo usado por hóspedes:espanhóis,franceses e alemães.São os que mais visitam o Marrocos(1,3 milhões de pessoas por ano) -sempre em bando, nunca sozinhos(com exceção de Ítalo)- e despejavam na economia marroquina mais de 1,5 milhões de dólares anual.Ítalo reparou que cada computador possuía um portal diferente:o ACDIM, de Rabat, o Alif Net, de Oujda, o Atlas Net , de Casablanca, e o Cybernet, de Marrakesh.Preferiu o de Marrakesh até para saber detalhes se a cidade sofrera a ação preventiva do governo.Navegou por quase uma hora, colhendo dados e notícias árabes e mundiais.Em seguida, entrou no site do banco Crédit Du Maroc para saber de suas finanças.Digitou sua senha e do outro lado da África,em pleno Oriente Médio, precisamente em Damasco,capital da Síria, um toque de celular acordou um corpulento senhor que dormia faustosamente em lençóis de cetim amarelo.











Saiu da sala e direcionou-se ao restaurante do hotel. Acomodou-se pensativamente num canto do recinto forrado à veludo azul com mesas acolchoadas de couro marrom e mesas vermelhas.Quadros de Rachid Sebtl decoravam o ambiente.Uma pálida luz relanceava os convivas - que eram poucos, pelo avançar das horas.Pegou o cardápio, mas não estava concentrado nele. Sua mente turbilhonava; aquela ansiedade o possuía prestes a entrar em ação em todas as ocasiões; riu e lembrou que professores, atores atrizes sempre diziam que dava um vazio na barriga quando iam entrar em cena, mesmo sendo veteranos. É o que sentia também.Passou os dedos procurando o que comer:”Couscois Royal”, escolheu.Vinha um cordeiro, sêmolas, legumes.Na sobremesa pedira amêndoas e frutas secas.Para beber, pedira uma bière de entrada e um Syrah Argentino.







Subiu ao quarto e ficou observando o céu pontilhado de estrelas. Um céu descomunal de lindo- pensou.”Aqui realmente é a terra das mil e uma noites, das fábulas árabes”.A brisa acalentava seu corpo trôpego.



Fechou os olhos e deixou-se esvaziar de teor alcoólico. O jantar delicioso pedira mais uma garrafa de syrah, destarte, um Chileno.Saíra do restaurante e fora aos estandes de livros.Haviam livros para consultas e leituras já decrépitos e outros novos para vendas.Pegou alguns ensaios de Matisse e Delacruix bem como livros de Driss Chraibi,Rachid O. e Ghita el Khayat.Uma bonita atendente o ajudara nas escolhas.Travaram conversa literária marroquina e ela lhe falou de grandes romancistas que ele não havia tomado ciência.”Tahar Ben Jelloun,Mohamed Choukri,Abas Ibn Ibrahim e o meu preferido, Alal al-Fasi.”



Ficara encantado com a simpatia e conhecimento da moça. Nascida em Frankfurt, criada em Nantes,estudos em Paris - turismo - estágio em Málaga, trabalho em Casablanca e agora em Rabat.Uma espécie de faz-tudo no hotel, inclusive vender livros e afins.Ficara sabendo de seu turno de trabalho e é claro, sua hora de folga. “Ah, as mulheres! Mundo pequeno, não?”







Ficou pensativo por uns instantes para responder aquela pergunta fatal: ”O que monsieur faz?” A beleza germânica o prendera em seu rosto emoldurado por longas melenas louras, como se o pó de todo ouro do mundo ali encontrasse seu depositário. Com um leve sorriso nos lábios disse-lhe que não passava de um jogador de futebol da segunda divisão espanhola momentaneamente desempregado, e que viera primeiro, aproveitar as férias enquanto estudava novas propostas.Não descartando a hipótese de até jogar no Marrocos,”quem sabe?”



Discutiram futebol por mais de dez minutos. Impressionante!Que mulher!”Falaram da “derrota alemã na Copa de 2002 para o Brasil (que prazer para Ítalo)”.” O Ronaldo estava impossível justamente naquele jogo”.-lamentara Helga.Teceram comentários sobre a decadência francesa, os poucos talentos alemães que surgem, a truculência do futebol italiano, a disciplina do inglês, a evolução dos países asiáticos e africanos e o milionário futebol espanhol, etc.



Trocaram apertos de mãos e ficaram de se encontrar, no hall, brevemente, para mais conversas de cunho cultural.



Ítalo tomou uma ducha e deitou-se. Folheou alguns livros, leu notas introdutórias, prefácios, capas e contra-capas e adormeceu.Teria um dia cheio logo pela manhã.



(CONTINUA NA PRÓXIMA POSTAGEM)